Entre as boas práticas de cidades contemporâneas estão objetivos como a proximidade entre casa e trabalho, a mistura de usos, a busca de uma densidade que permite caminhabilidade e que os térreos dos edifícios sirvam de “olhos da rua”, nas palavras da urbanista Jane Jacobs, voltados para as calçadas. Como exemplos dessas características estão cidades como Paris, com a sua vida de estabelecimentos voltados para o passeio, Barcelona, com suas quadras elaboradas pelo Plano Cerdá, Nova York, com sua intensa vida urbana na ilha de Manhattan, e Hong Kong, com a sua enorme densidade em um pequeno pedaço de terra. Todos esses exemplos estão situados em realidades distintas da vida urbana do Brasil, um país emergente.
Afinal, onde poderia se observar uma realidade semelhante à brasileira, para que se possa aprender com o seu urbanismo?
A resposta é: CABA – Ciudad Autónoma de Buenos Aires, a “Paris da América do Sul”. Cidade que cresceu com forte imigração espanhola, inglesa, francesa e italiana, viveu um verdadeiro boom econômico na virada entre os séculos 19 e 20 e hoje sente os reflexos das crises econômicas que há décadas vêm assolando a Argentina.
Quem visitou a cidade no passado, ao voltar agora, irá notar um aumento de pedintes nas ruas e favelas na periferia. Irá notar, também, uma quantidade considerável de lojas fechadas no Microcentro devido ao forte lockdown que Buenos Aires passou na pandemia. Mas o requinte de seus cafés, livrarias e restaurantes, característicos dos “porteños”, continua.
Suas ruas permanecem cheias de pessoas, com pequenos mercados em todas as quadras, mesmo em bairros residenciais mais afastados do centro. Em Colegiales, Villa Urquiza e Caballito se vê bastante gente na rua, diferente de zonas mais afastadas da região central nas metrópoles brasileiras. Não é à toa que a CABA possui 14.307 hab./km², sendo a cidade mais densa de toda América, possuindo quase o dobro da densidade média de São Paulo.
E qual o porquê dessa característica? Por causa do urbanismo e da verticalização aplicada em Buenos Aires.
A cidade, que também é conhecida por suas largas avenidas com várias faixas de veículos, vide Av. 9 de Julio e Libertador, consegue ter calçadas amplas, tornando-se extremamente caminhável. Nas ruas mais estreitas, ciclofaixas se mesclam entre vias e passeios, todos no mesmo nível, separados apenas por fradinhos. Em ambas ocasiões, o famoso conceito “olhos da rua” está presente, assim como o comércio de bairro e as lojas no alinhamento da calçada, devido a não-necessidade de recuos de jardim nas edificações.
Essa composição morfológica faz com que a Av. Corrientes não seja inferior em nada à Broadway de Nova York. Famosa por seus restaurantes, lojas, cinemas e teatros, a avenida mescla públicos de variados tipos durante o dia e a noite. Nos finais de semana, libera metade de sua caixa viária para a população caminhar e curtir o agito local.
A imensa maioria dos edifícios da CABA são no alinhamento da calçada e sem recuos laterais, variando entre 10 a 15 pavimentos. E aí está a principal característica da cidade, que a torna densa, caminhável e cheia de gente nas “calles”: edificações sem afastamentos frontais e laterais. Enquanto isso, nas cidades brasileiras estamos acostumados com edifícios isolados nos lotes.
Por exemplo, a edificação abaixo, de 12 pavimentos em Palermo Hollywood, bairro boêmio da capital argentina, inserida em um terreno de 8,5 m de frente, não possui recuos laterais e nem frontais. Essa edificação, caso fosse construída em Porto Alegre, precisaria de um terreno com 22,9 m de frente para incluir os 7,2 m de recuos exigidos de cada lado. Se fosse construída em Belo Horizonte, precisaria de um terreno com 21,1 m frontais, com 6,3 m de recuos exigidos para cada lado. Em São Paulo, precisaria de um terreno de 15,1 m, com 3,3 m de recuos de cada lado. Como exigir maiores densidades nas cidades brasileiras com essas exigências de afastamentos tão comuns nos Planos Diretores? Buenos Aires ensina.
Os edifícios altos, acima de 15 andares, também são comuns na CABA. A região da Av. Callao, por exemplo, possui prédios com 25 pavimentos ou mais. A inserção desses edifícios está sempre alinhada com a calçada e possui comércio no térreo. Nesse caso, há algum tipo de recuo nas laterais e fundos para iluminação — inferiores ao que se exige no Brasil, é claro.
Há ocasiões em que os edifícios em altura compõem, em diferentes estratégias, com as edificações mais baixas, como é o caso do Edifício Panedile, do arquiteto Mario Roberto Alvarez. A clássica edificação modernista se alinha com o gabarito da quadra seguindo o número de pavimentos dos edifícios vizinhos. E, em um gesto de criar uma praça interna, recua o volume mais alto de 27 andares, afastando-o do alinhamento da Av. Libertador.
Um exemplo mais contemporâneo da morfologia de edifícios altos na CABA é a Torre Viñoly, de 100 m de altura, projetada pelo arquiteto Rafael Viñoly. A edificação, inserida em um contexto de cidade já consolidado, equaliza parte da altura com o edifício na divisa ao seu lado direito. Já no lado esquerdo, segue o ritmo de sacadas da edificação vizinha, separada por uma rua. A partir dessas estratégias é que a edificação sobe até o ponto máximo possível.
Também como exemplo contemporâneo mas já com recuos laterais, a Torre Bellini, de 118 m e 37 andares, dos arquitetos Aisenson, possui como princípio “abraçar” seu entorno. O jornal Clarín publicou uma matéria intitulada “Uma torre amiga del entorno” por sua composição de duas volumetrias diferenciadas. O primeiro volume, com 18 andares, se contextualiza com as edificações da quadra. Na segunda volumetria, até o 37.º pavimento, dialoga com os edifícios mais altos da região, configurando o conhecido skyline do bairro de Palermo. O térreo é voltado para uma pequena praça, um espaço público cedido pelas edificações vizinhas, de maneira que amplia a calçada, aumentando o tempo de permanência do pedestre na rua.
Edificações isoladas no lote também são vistas por Buenos Aires, principalmente nas regiões de Puerto Madero e Catalinas Norte. Nesses locais estão a maioria dos edifícios mais altos da cidade, como é o caso da Alvear Tower, a edificação mais alta de CABA, com 235 m de altura e 56 andares.
Em outros bairros, essas torres rodeadas por recuos estão presentes. Não de forma geral, mas houve um significativo aumento delas nas últimas décadas. Uma morfologia de edificação bem semelhante a produzida no Brasil: edifícios altos no meio do terreno, afastados das calçadas, murados e cheios de áreas condominiais.
Depois de 41 anos, em 2018, Buenos Aires apresentou seu novo “Plan Urbano.” Seu intuito é barrar a crescente construção de torres isoladas, com o discurso de beneficiar o pequeno empreendedor imobiliário, não permitindo mais que os grandes comprem enormes áreas para a produção delas. Para haver essa mudança, a prefeitura da CABA aumentou em 20% o potencial construtivo dos terrenos e padronizou seis alturas permitidas. Há locais de exceções, como em Puerto Madero e Catalinas Norte, em que se pode construir mais alto devido à existência de regimentos especiais que sempre permitiram alturas superiores às normalmente encontradas na cidade.
As novas alturas, todas sem recuos laterais e no alinhamento da calçada, variam de 9 m, 10,5 m, 16,5 m, 22 m, 31 m, até 38 m de altura, em torno de 12 pavimentos. A ideia é que nas principais avenidas estejam estabelecidas as alturas maiores e que vão diminuindo conforme se vai adentrando no bairro.
Essa atual normativa também visa o emparelhamento das quadras, ou seja, consolidar quadras com alturas homogêneas, não havendo mais os famosos “vazios urbanos”, principalmente nas esquinas, onde em alguns locais não era permitido construir em altura. Dessa mesma forma, a legislação permite, em casos de vizinhos de altura superior a 38 m, que a nova edificação se equalize no mesmo tamanho lindeiro. Esta seria, então, a única maneira de se poder construir em alturas superiores aos 12 andares.
Existem outras mudanças nessa nova legislação, como a eliminação de várias zonas estritamente residenciais ou industriais, e incentivando o uso misto. O novo Plano Diretor quer adensar ainda mais a cidade, mas há uma grande perda nele: Buenos Aires era até então um ótimo exemplo de cidade em que as edificações baixas e altas sabiam conviver em harmonia. A CABA era um exemplo para o Brasil e o mundo de como um edifício alto pode dialogar com seu entorno.
Modelos, como a Torre Viñoly citada anteriormente, não poderão mais ser construídos nesse “Plan Urbano”. Mudanças drásticas tomadas para conter um mal que as cidades brasileiras mantêm revisão após revisão de planos diretores, o edifício rodeado por recuos.
Talvez a melhor alternativa não seria eliminar radicalmente o uso das edificações em altura e, sim, com o uso de Guidelines, como os de Londres e Toronto, esboçar alternativas para que a torre em altura converse como o seu entorno.
Mesmo assim, a capital da Argentina tem muito a ensinar às cidades brasileiras. Não só Buenos Aires, mas todas as grandes cidades do país: Córdoba, Rosário, Mar del Plata… No futebol, o Brasil é melhor, mas no quesito urbanismo e verticalização, mesmo com todas as crises e políticas inflacionárias, os “hermanos” dão um banho de bola no Brasil.
Via Caos Planejado.